segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Aligeirada lembrança


Era sábado, e Ela chegara em casa, naquela noite, levando impressões que o Tempo, durante muito tempo, havia apagado de suas mãos.

O jornal lhe solicitara uma matéria para segunda-feira. Política, economia, avanços tecnológicos ou coisa parecida. Ela foi ao quarto, acionou o micro, mirou a tela e deixou que as mãos deslizassem, adestradas, sobre a superfície lisa do teclado, enquanto o verde-dos-seus-olhos se perdia...

As mãos deslizavam e as suas lembranças iam tocar o dia diferente que tivera. Ali, sob o sol ameno da Cidade Imperial, aquelas mesmas mãos tocaram mãos que a convidaram quarenta e oito horas antes para o enlace, e que não eram tocadas pelas suas há quarenta e oito meses.

O verde-dos-seus-olhos revia, no verde do jardim do Museu, o mesmo verde do jardim da Universidade, aquela que o Tempo dissipara de suas retinas e que unira aquelas mãos, um dia, pela primeira vez.

Unidos novamente pelo Tempo no verde dos olhos d’Ela e dos jardins, aquelas mãos deslizaram umas sobre as outras, e, juntas, percorreram os recantos do Museu da Cidade Imperial como as mãos de um Rei e uma Rainha que reinassem, soberanos, sobre o esplendor da própria Cidade.

Tudo isso desfilava, aligeiradamente, pelo verde-dos-seus-olhos, enquanto suas mãos deslizavam, decididas, sobre a face clara do teclado.

Mas, além do verde e das mãos, os olhos verdes d’Ela também se viram nos olhos d’Ele, olhos-cor-de-solidão. E Ela descobriu-se também só, na solidão voluntária da ave que abandona o ninho à procura de um Castelo de Cristal, fugidio...

Sim, eles eram Rainha e Rei Solitários, destinos cruzados naquelas mãos que o Tempo teimara, por tanto tempo, em afastar.

Ela constatava isso, exatamente assim, no exato momento em que suas mãos silenciaram o teclado, enquanto o verde-dos-seus-olhos recordava aqueles olhos que estiveram tão perto dos seus, no verde da Universidade e do Museu.

A matéria da segunda-feira estava garantida, redigida com tintas de jornalista decidida. Mas ali, ao pé da tela, numa cor diferente, talvez na cor verde dos seus olhos, ficaram registrados versos que somente a cor-de-solidão dos olhos d’Ele, com a permissão do Tempo, seria capaz de decifrar.

O dia fora diferente e belo, concluía Ela, como bela e diferente era a Felicidade que Ele, soberano, fizera brilhar no verde-dos-seus-olhos e no macio das suas mãos.


23-24/11/04
madrugada produtiva...

2 comentários:

Ludmilla Mattos Pinheiro de Souza disse...

ahuahua! adorei!
uau!muito bom, já dá pra escrever um livro...rsrsr, é só continuar...rsrsr

Ricardo Dib disse...

Bem produtiva mesmo. rs!

Abraço.